INTRODUÇÃO
Inicialmente, esclareço que o presente texto é de cunho particular e meramente filosófico. Não possui o objetivo de agredir e, muito menos, afetar ou modificar a fé ou a crença de qualquer pessoa. Trata-se de conteúdo produzido a partir de uma provocação reflexiva sobre as passagens bíblicas descritas em Gênesis 1.27[1] e 28[2], 2.18[3], 21[4] e 22[5], esclarecendo que os textos de referência foram extraídos da Bíblia Online[6].
Antes de adentrar a reflexão, é preciso compreender que a Bíblia (livro sagrado da Cristandade) é um compêndio de diversos escritos tomados da cultura hebraica e que são considerados sagrados e aptos a revelar os desígnios de Deus. Logo, representam recortes de escritos e passagens cujos fatos jazem sob a poeira do tempo ou das brumas do passado. Portando, a leitura dissociada pode levar à inconclusões.
É preciso ter em mente que os textos bíblicos são representações de uma cultura envolta pelas brumas do passado. Além do mais, não há como se afirmar que as sucessivas traduções são fidedignas a simbologia daquela época. Logo, qualquer pequena alteração na estrutura ou na organização da sintaxe linguística adotada pelo povo hebreu naquele tempo, assim como acréscimos ou modificações, certamente, afetaram o sentido e impuseram novas dimensões que modificaram o alcance ou desviaram o norte original.
A leitura dos textos sagrados exige a compreensão da estrutura e da organização teológica que sustenta o adequado entendimento. Acréscimos e modificações podem impor novas dimensões que acabam transformando e desviando a realidade original. Por isso, mais uma vez, admoesto e destaco dizendo que o presente escrito é particular e de natureza filosófica, razão pela qual antecipo escusas por eventuais discordâncias daqueles que melhor compreendem o sacro texto, assim como daquele que porventura pensam diferente.
REFLEXÃO
Numa compreensão simbólica, a expressão “homem” não deve ser tomada com signo do masculino, mas de humanidade, pois considerando a forma como está escrito e levando em consideração os atuais conceitos acerca da expressão homem que, quando empregada em certos contextos, designa a espécie humana ou humanidade, signo da coletividade dos seres humanos, parece plausível que Deus criou a humanidade e não o homem singularmente considerado (masculino).
Esta compreensão sobreleva-se da estrutura de Gênesis 1, acerca da criação dos seres viventes que povoaram a terra. Colhe-se que Deus criou as espécies, signo de variedade. Isto fica claramente constatado nos plurais empregados. Portanto, com a espécie humana não teria sido diferente.
Além do mais, toda a criação foi alicerçada na dualidade entre o masculino e o feminino. Referido entendimento se extrai de Gen. 1.27, quando diz que Deus “criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e a mulher os criou”.
Sob este enfoque, a humanidade seria o reflexo do próprio Criador, que embora uno em sua deidade (alfa e ômega), teria projetado sua própria imagem, fragmentando-a em duas partes opostas, porém complementares. No caso, em masculino e feminino, representando a dualidade da criação.
Ousaria dizer que a humanidade (conjunto de homens e mulheres) é o fragmento da partícula inicial e, nesta qualidade, teria herdado todas as potencialidades para reinar e subjugar tudo que vive na terra, lugar predestinado a ser sujeitado por inúmeros seres de igual potência, na medida que receberam a incumbência de gerar suas descendências (“Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra” – Gênesis 1:28).
Filosoficamente falando, gêneses 1:27 e 28, remete a ideia de que as imagens criadas (homens e mulheres) seriam a manifestação incorpórea ou imaterial do Ser que se projetara. Noutro dizer, seria o espírito manifestado dualmente (masculino x feminino), porém carente de matéria (corpo físico) para realizar seu mister na terra, lugar, sabidamente, corpóreo (constituído de matéria – palpável).
Considerando que a imagem de Deus (homens e mulheres) seria a manifestação espiritual, Adão seria uma alegoria sobre a humanidade (espécie adâmica), concebida para transmitir o entendimento acerca da comunhão do espírito com a matéria, animando-a e dotando-a das condições necessárias para povoar a terra e dominá-la, assim como tudo que nela vive.
Portanto, Gênesis 2:18, 21, 22 expressa o entendimento de que a expressão Adão (masculino) e Eva (feminino), fisicamente, são formados da mesma matéria, cujo simbologia está contida nas costelas tomadas de Adão (Gen. 2:23 – “E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher …”).
A errônea compreensão desta alegoria leva ao entendimento de que a mulher teria sido gerada a partir de Adão. Todavia, como visto em Gêneses 1:27, espiritualmente falando, o homem e a mulher, Deus os criou. Melhor dizendo, Deus em espírito os criou, assim como neles manteve a sua semelhança, sinônimo de potencialidades divinas da imagem projetada. Logo, no espírito humano jaz os traços do divino e todas suas condições.
Realça-se que a criação é dual, eis que toda espécie fora manifestada (criada) ao par, significando que são complementos um do outro. No caso de Adão e Eva, esta simbologia está expressa em Gêneses 2:18, ao se referir a “ajudadora idônea”, cuja compreensão remete àquele(a) que possui capacidade, conhecimento ou competência para realizar ou fazer algo.
Logo, Eva, simbolicamente, representa a comunhão do reflexo feminino de Deus com a matéria (corpo físico) e nesta qualidade seria tão apta e capaz para realizar as funções que a ela competiria, assim como Adão com as suas. Dentro desta condição, juntos deveriam seguir seus destinos sobre a face da terra.
Sob esta perspectiva, a alegoria de Adão e Eva explica que todo ser humano (espécie adâmica/humanidade) nada mais é do que matéria (de mesma origem) animada pelo espírito, signo do reflexo divino manifestado. É apenas uma metáfora para explicar a concepção humana em sua singularidade, assim como na sua pluralidade existencial.
Portanto, a compreensão conduz ao entendimento de que Adão e Eva não seriam a matriz inicial da humanidade. São apenas uma alegoria para explicar a dualidade material e espiritual do homem (gênero), mas que a leitura isolada dos fragmentos bíblicos ou dos textos que lhes deram origem não permite exprimir.
Dentro dessa compreensão simbólica, infere-se que a expressão “homem” deve ser tomada como signo da humanidade, cujo conceito expressa a coletividade de seres humanos formados por indivíduos masculinos e femininos que foram espalhados sobre a superfície terrestre, observando que alegoria de Adão e Eva serviria apenas para explicar que todo ser humano nada mais é do que matéria animada pelo espírito.
[1] E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.
[2] Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.
[3] E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele.
[4]Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar;
[5] E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão
[6] Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/arc/gn – acesso em 02/11/2023.