É cediço que os impostos definidos no bojo constitucional foram distribuídos entre os entes políticos com a máxima observância ao pacto federativo, cujo vértice possui rigidez de cláusula pétrea. Disso resulta que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, na qualidade de integrantes da federação brasileira, possuem competências privativas em relação aos impostos definidos nos artigos 153, 155 e 156, da Magna Carta. Daí dizer que, sob o auspício do sistema tributário delineado no bojo constitucional, o ordenamento pátrio não se coaduna com a figura da bitributação, posto ser ela um frontal ataque à forma federativa do Estado Brasileiro.
Em que pese a competência tributária possa ser entendida como poder para criar leis e impor a exação ao cidadão, importa destacar que tal atribuição não é absoluta, posto que há a necessidade de se observar os limites traçados no texto constitucional. Vale lembrar que a República Federativa do Brasil, ao se revestir como “Estado Democrático de Direito”, revela os auspícios de um Estado liberal, cuja Carta Política prescreve inúmeros direitos aos cidadãos, dentre eles o de não ser expropriado indevidamente. Embora o pagamento de tributo seja um dever fundamental e seja uma rara obrigação de cidadania presente implicitamente no bojo da Magna Carta, inserta na estreita brecha aberta dentre as impolutas liberdades, o mesmo acha-se contido por um intransponível campo de força, cujas raízes se estribam no direito de propriedade e da livre iniciativa (artigo 5º, XXII e XXIII, CRFB/1988) que, juntamente com outras barreiras constitucionais, denominadas limitações ao poder de tributar, formam um verdadeiro código de defesa do cidadão contribuinte.
Os vetores das limitações ao poder de tributar impedem que o Estado se lance de forma abrupta e violenta à tributação, assim entendida como manifestação do poder estatal votado para invadir as liberdades e o patrimônio do cidadão e a ele impor a obrigação de entregar o quantum estabelecido. Por ser a República Federativa do Brasil um Estado liberal, embora de forte viés social, a Magna Carta determina que nenhum tributo pode ser exigido sem antes ter seus contornos e limites estabelecidos pelo legislador, o qual, por sua vez, deve respeitar os inúmeros princípios que limitam o próprio poder de tributar.
Nesse viés, implica dizer que sempre que o cidadão pratica as condutas insertas dentre as hipóteses de incidência tributária, o mesmo está seguro de que o ente tributante, para exigir-lhe o cumprimento do dever entregar o montante pecuniário ou impor obediência a qualquer outra obrigação secundária, deve, preliminarmente, assegurar-se de que cumpriu todos os ditames constitucionais e legais inerentes à tributação. Talvez seja esta a melhor tradução para o conceito de “atividade administrativa plenamente vinculada”, presente no artigo 3º, da Lei Federal nº 5.172/1966 (Código Tributário Nacional – CTN) e que revela as insólitas muralhas que aprisionam os fiscos e lhes impõem a máxima obediência às leis e normas em geral, sob pena de aniquilação das exações que impuserem.
À luz disso, a competência tributária privativa, relativa aos impostos, deve ser interpretada em harmonia com o texto constitucional, especialmente no que se refere aos ditames do artigo 146, I e III, “a”, a saber:
Art. 146. Cabe à lei complementar:
I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
[…];
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
[…].
Antevendo conflitos de competências entre os entes políticos, naquilo que a doutrina majoritária denomina de bitributação, o Legislador Constituinte de 1988, precavidamente, determinou que caberia à lei complementar ceifá-los. Tal disposição tem na sua alça de mira a harmonia e estabilidade do pacto federativo, assegurando ao cidadão contribuinte, na seara da tributação, os postulados da segurança jurídica, cujo expoente conduz a certeza do quanto a ser entregue e a quem de direito, não devendo ficar sujeito à voracidade fiscal desmedida ou a transferência ao erário público daquilo que seja maior que a sua capacidade contributiva.
Sob esse auspício, exemplificativamente falando, a lei complementar federal nº 116/2003 (que dispões sobre o imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISSQN) deve ser interpretada sob duas óticas: a) primeira – como norma geral que disciplina os elementos centrais do ISSQN, no que se refere a previsão da base de cálculo, contribuintes e fatos geradores, este ultimo no sentido de listar os serviços tributáveis pelos municípios (art. 146, III, “a”, combinado com o art. 156, III, da CRFB/1988); segunda – como norma geral eliminadora de conflitos de competências entre os municípios (art. 146, I, da CRFB/1988), no que tange aos artigo 3º e 4º.
Pode-se dizer, em fina síntese, que as leis complementares que carregam em seu bojo as enunciações gerais não são normas gerais; elas são, a bem da verdade, normas estruturantes do sistema tributário nacional e que determinam o modelo a ser seguido pelos Entes Político, quando do exercício da competência tributária. Frise-se, que a competência tributária não outorga poder ilimitado para tributar, observando que o texto constitucional dispõe de inúmeras barreiras que obstacularizam o animus exacional desmedido, desproporcional e irracional.
As leis complementares que veiculam os conteúdos tratados no artigo 146, I e III, da Magna Carta, são verdadeiras limitações ao poder de tributar e nessa qualidade devem ser respeitadas, sob pena de aniquilação da exação. Elas possuem o escopo de dar efetividade aos postulados do princípio da segurança jurídica presente no Estado Democrático de Direito, status este de que se Reveste a República Federativa do Brasil.
Informações Sobre o Autor:
Miqueas Liborio de Jesus.
Auditor Fiscal do Município de Joinville (03/1998), Membro julgador da Junta de Recursos Administrativo-Tributários do Município de Joinville, Professor das cadeiras de Direito Tributário I e II, do Curso de Direito da Associação Catarinense de Ensino (ACE), Bacharel em Ciências Jurídicas (Direito), pela Universidade da Região de Joinville (Univille), aprovado no exame da OAB em 2006 e especialista em direito tributário pela FGV.
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